5º Valor – Comunidade Pactual (Parte 1 – Igreja Local)

Ivo Ferreira

 A palavra “pacto” significa acordo ou aliança. O pacto, no Velho Testamento, é representado por uma ocasião solene, na qual pessoas selam um acordo por meio de um ato de derramamento de sangue. Esse acordo pode acontecer entre duas ou mais pessoas que tenham um propósito de realizar algo juntas. O pacto (ou aliança) gera garantia e segurança aos relacionamentos.

Comunidades pactuais são comunidades, ajuntamentos de pessoas, unidas concordemente a partir do entendimento de um pacto. Mas viver um relacionamento de aliança sem o entendimento do que é a Nova Aliança não é uma aliança com Cristo (o evangelho, a Pessoa).

“Semelhantemente, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este é o cálice da nova aliança no meu sangue derramado em favor de vós” (Lc 22.20)

Jesus, no texto acima, fala sobre o pacto da Nova Aliança, cujo propósito é trazer reconciliação do homem com o próprio Deus; a ira que viria sobre nós é apaziguada, levando-nos a ter acesso à presença do Pai. Hebreus 10 diz que o sangue de Jesus abriu um novo e vivo caminho (vv. 19,20), e Mateus 27 afirma que o véu do templo foi rasgado e podemos afirmar, por causa disso, que agora temos livre acesso ao Pai (v.51). Essa aliança, em primeiro lugar, me livra da ira de Deus que estava sobre mim; e, em segundo lugar, me reconecta (coloca novamente em contato) com Deus. O pacto (a aliança) de Jesus Cristo crucificado (o Verbo de Deus que se fez carne, que habitou entre nós e viveu uma vida santa e plena diante de Deus) foi para que nós tivéssemos vida.

O centro da comunidade de aliança é o Novo Pacto. A questão é que, muitas vezes, pensamos em relacionamentos de aliança como sendo simples relacionamentos interpessoais baseados na afinidade entre nós, isto é, temos comunhão com as pessoas, conversamos sobre os mesmos assuntos, porque temos afinidade. Porém, essa afinidade, muitas vezes, é carnal e não verdadeira comunhão. Já ouvi cristãos dizendo ter mais comunhão com os colegas de trabalho (não cristãos) do que com os irmãos da igreja. Com isso, demonstram não ter um entendimento correto a respeito do que seja a verdadeira comunhão. É preciso entender que comunhão não é simplesmente estar com pessoas com quem gostamos de conversar, ouvir e falar, mas é estarmos reunidos ao redor do evangelho, da pessoa de Jesus.

Relacionamentos sem o entendimento do que seja a verdadeira aliança não geram comunhão nem igreja. Isso pode ser chamado de confraria, de ajuntamento, de clube, mas não de igreja. Se a igreja tem essas características, os seus membros saem das suas reuniões e marcam encontros na casa de alguém para comer pizza e falar sobre qualquer coisa. Saem dali debaixo de uma leveza porque o seu encargo sacerdotal, naquele momento, foi cumprido. Estavam no culto “ministrando ao Senhor” e agora vão ter “comunhão” com os irmãos.

Precisamos entender que o sacrifício de Jesus por nós, uma doação sem pretensão de receber algo em troca, deve gerar uma mensagem em nossa mente. A compreensão cognitiva da mensagem (as boas novas) chega ao nosso coração nos tornando redimidos e justificados diante de Deus. Nesse processo do conhecimento de quem é Jesus, eu vou sendo santificado. Ao olhar para a sua vida, o que percebemos é o seu amor, sua entrega e doação. A comunidade pactual se torna, então, a comunidade daqueles que viram os atos de Jesus, o amor de Deus, as características do Pai reveladas no Filho, e tiveram o coração cativado e aquecido por seu amor. A comunidade formada a partir dessa experiência gera uma movimentação comunitária, e cria-se, então, uma cultura coletiva de amor ao Senhor.

“Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força” (Mc 12.30).

Esse foi o primeiro mandamento que Jesus ressaltou nos evangelhos. À medida que a comunidade se aprofunda no conhecimento do amor de Deus, ela é aquecida pela paixão por Jesus, vivencia o primeiro mandamento e começa a receber empoderamento e graça para viver o segundo mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (v.31). O segundo mandamento é tão importante quanto o primeiro, mas é consequência do primeiro, e não o contrário. Nós só viveremos relacionamentos horizontais saudáveis, incluindo uma comunidade pactual, se entendermos o novo e vivo caminho que foi aberto pelo Novo Pacto. A partir do momento em que fico deslumbrado com o sacrifício de Jesus na cruz em meu lugar, o meu coração é aquecido e esticado em amor por ele. E à medida que o amo, eu consigo, pela graça, amar os meus irmãos.

É impossível viver relacionamentos de aliança senão pelo Espírito Santo. A pessoa que anda na carne não tem condições de guardar os termos de uma aliança. O amor de Deus, derramado em mim, gera no meu coração um desejo de unidade, e a unidade gera testemunho de Cristo às nações. Romanos 8.19 diz que “a ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus”, e a igreja tem seu papel nisso como afirma Efésios 3.10: “pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus se torne conhecida, agora, dos principados e potestades nos lugares celestiais”. Porém, só vamos ter graça para revelar essa multiforme sabedoria às potestades quando vivermos a unidade da qual falou Jesus em João 17.21: “a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste”. Só existe uma forma de dois se tornarem um: por meio de um pacto. Uma aliança, um casamento, desafia as leis da física (dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo ou um é um e dois é dois e nunca dois pode ser um!) e, por isso, escandalizamos o mundo quando dizemos que “eu e minha esposa somos um”.

Benefícios de uma comunidade pactual:

1º – O primeiro benefício tem a ver com uma cultura de compromisso com pactos, isto é, de fidelidade às alianças; pessoas que abraçam o real valor delas.

2º – O segundo benefício tem a ver com o ambiente de amor, honra, afirmação, perdão, confissão, aconselhamento, exortação, submissão. Um ambiente assim permite espaço para o erro.

Muitos não conseguem viver relacionamentos de aliança porque têm problemas com o pecado. Porém, não devemos esquecer que o problema do pecado foi resolvido na cruz. O que o evangelho exige de nós é arrependimento do pecado. Ao nos arrependermos, o evangelho produz em nós poder para viver uma vida de santidade. Ao enfatizarmos o pecado, em vez do arrependimento, nossa tendência é excluir aqueles que pecam ao nosso redor; afinal, pensamos, eles estão manchando a aliança que temos. Ao falar de um ambiente de amor e aceitação, não me refiro a sermos como as igrejas inclusivas que relativizam e abraçam o pecado, mas como as igrejas que trabalham na restauração de quem pecou. De fato, precisamos pontuar o pecado e exortar a pessoa a que se arrependa, mas não vamos excluí-la, porque, nos relacionamentos de aliança, há espaço para o perdão e para a cura. Em comunidades pactuais não existe nem a apologia nem a ridicularização do pecado.

Danny Silk, em seu livro Mantenha o Seu Amor Aceso, trata de três temas.

Conexão – As conexões são os relacionamentos de aliança. É um duto por onde o amor do corpo de Cristo flui num movimento de ida e volta. No começo de um relacionamento, esse duto de amor está limpo, e flui vida por ele. Mas, com o passar do tempo, esse fluir pode encontrar problemas pelo caminho. E aqui cabe um parêntese: onde há pessoas é certo que surgirão problemas de relacionamento. Mas se eu tenho convicção da aliança, não permitirei que os problemas se acumulem e obstruam o canal de conexão por onde flui a vida e o amor. Relacionamentos são como recipientes que contêm a presença de Deus e nos quais ela se manifesta. Por isso, devemos zelar por eles, não pela dependência emocional das pessoas, mas pela dependência moral de Deus. Porque dependo dele, eu preciso que o canal de conexão, por onde ele flui, permaneça limpo.

Silk trata da conexão, falando dessa manutenção diária que você precisa dar às suas relações. O medo, por exemplo, deve ser extirpado. A passagem de 1 João 4.18 diz: “No amor não existe medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo. Ora, o medo produz tormento; logo, aquele que teme não é aperfeiçoado no amor”. Eu acredito que o contrário também seja verdadeiro, o medo expulsa o amor. Relacionar-se numa base de medo impedirá que o amor flua entre as partes envolvidas. Por isso, devo ser responsável por cultivar a presença de Deus nos meus relacionamentos. Ou seja: preciso de um plano de higiene nas minhas conexões a fim de que o amor de Deus sempre flua entre mim e meus irmãos.

Comunicação – A comunicação é o meio pelo qual faço a manutenção nos relacionamentos. Ela existe para que os sentimentos sejam comunicados. Isso não significa uma cultura de melindres, mas dar às pessoas oportunidade para falar de suas dificuldades. Talvez, a dificuldade seja algo subjetivo que esteja apenas em sua cabeça, mas, mesmo assim, preciso estar disposto a ouvi-las e a não desprezar sua dor e seus sentimentos. Mesmo percebendo o excesso de fragilidade no diálogo, eu preciso, com graça, mostrar às pessoas as mentiras que estão impedindo que a vida flua em nossa relação.

Limite – Limites são os termos da aliança. Somos chamados a viver uma vida comum, mas não sem viver também uma vida individual. É importante entender que vida individual nada tem a ver com individualismo, egocentrismo ou egoísmo. Comunhão verdadeira só existe a partir de um coração altruísta, que tem disposição de dar. Por outro lado, não posso liberar espaço para as pessoas na minha vida baseado num discurso altruísta se não experimentei antes essa realidade no meu coração. Não posso dar a outra face para o irmão bater e sair dali planejando assassiná-lo. Preciso experimentar, de fato, a realidade envolvida nessa questão. Se eu tenho de perder e morrer para que a minha vida seja gerada no outro, o que eu preciso é morrer de fato. Porém, se morrer vai gerar morte e não vida em mim, eu preciso estabelecer limites e dizer ao meu irmão: “Se você passar daqui, vai infringir os limites da nossa aliança e isso vai gerar problemas entre nós”.

O propósito principal não é gerir relacionamentos, pois teorias de relacionamentos interpessoais, que são aplicadas dentro de uma organização, não resolvem conflitos interpessoais, mas geram comportamentos politicamente corretos. Ao abraçar esse tipo de filosofia dentro da igreja, vivemos uma comunidade de marionetes, pessoas que fingem amar, mas que se odeiam. Não devemos buscar relacionamentos de aliança simplesmente para viver bem, mas porque queremos construir um lugar para a habitação de Deus.

Toda aliança tem um sinal. Em nossa cultura, quando casais se unem, o sinal da aliança são dois anéis iguais. Na Bíblia, o arco- íris, a circuncisão e o sábado são exemplos de sinais de aliança. Os sinais da Nova Aliança são o batismo e a ceia. O batismo (além de outros sentidos importantes) é sinal de ser incluído na comunidade da aliança, e a ceia é sinal da permanência nessa aliança.

Toda aliança tem termos, regras e condições pelas quais os aliançados definem seu comportamento, a fim de preservar a confiança no relacionamento. Não existe uma aliança sem termos, pois como eu posso confiar no outro sem saber o que ele espera de mim e vice-versa? Ultrapassar os limites da aliança quebra a aliança e gera traição.

A aliança tem um papel de testemunhar aos outros o amor de Deus que existe na comunidade cristã. Logo, se somos uma comunidade cristã, somos também pessoas que têm algo em comum. Isso não significa o que se diz por aí: “Tudo que é seu é meu”. Pensar assim resultou em problemas até mesmo na Bíblia. Mas o nosso alvo comum é Cristo.

Comunidade pactual é uma sociedade, um ajuntamento de pessoas que se unem através do novo pacto, ao redor da mensagem de Cristo. Ela tem por objetivo uma cooperação mútua para viver a mensagem do evangelho, tornando as pessoas parecidas com Cristo. A ideia de Deus para a igreja é que ela seja uma família de muitos filhos semelhantes a Jesus. Se em nossa comunidade as pessoas não se parecem com Jesus, não têm o seu perfume, certamente estamos fazendo alguma coisa errada, pois ela existe para expressar Cristo. Veja o que diz Pedro:

“Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”

(1 Pe 2.9).

Uma comunidade pactual só existe quando há o entendimento de que cada crente é um sacerdote que ministra a Deus e uns aos outros. Em outras palavras, uma comunidade sacerdotal se forma vivendo relacionamentos pactuais e manifestando a glória de Deus ao mundo.

Comentário complementar de Harold Walker:

A reforma protestante não tinha uma base pactual. Tinha a Bíblia como base. Ou seja: se você tem a doutrina e o credo certo, você está comigo; se não, você está fora. Isso aconteceu porque naquela época eles tinham de ressaltar a verdade bíblica objetiva para poder resistir e lutar contra o poder monolítico do papado que, por mil anos, usava a autoridade civil e religiosa para manipular a fé das pessoas e tapava as mentes com superstições. Então, apesar de ser errado, é explicável o que eles fizeram.

Porém, nossas igrejas hoje pensam que Deus não se importa se eu quebro uma aliança com alguém. Posso magoar e trair um pastor que foi meu mentor, roubar os membros de sua igreja, começar outra igreja e adorar a Deus como se nada tivesse acontecido! Mas o que nós, as igrejas associadas do Tikkun Brasil, estamos propondo com esse valor de ser uma comunidade pactual é que, se nós ensinarmos corretamente, um colega de ministério poderá até cair em fraqueza e sair, mas não terá coragem de começar outra igreja sem primeiro buscar reconciliação, porque sabe que Deus não lhe permite fazer isso. Se enfatizarmos direito esse valor, todos que andarem conosco vão estar profundamente convictos de que Deus se importa com aliança e não aceita a adoração de alguém que seja traidor.

Só o Espírito Santo pode nos ajudar a sempre nos manter fiéis às nossas alianças, porque não somos pessoas perfeitas e muitas vezes ofendemos nossos companheiros de ministério ou ficamos ofendidos com eles. Pode acontecer, às vezes, de ser necessário nos afastarmos da comunhão por um tempo até que haja reconciliação, e nossas mágoas sejam curadas. Mas isso não significa que vamos seguir em frente como se tudo estivesse normal, ou que possamos começar outra igreja e achar que Deus nos abençoará.

É óbvio que a aliança que nos une a uma congregação local não é “até que a morte nos separe” como é a aliança do casamento. Podem surgir situações nas quais precisemos ser liberados de andar tão ligados a determinado ministério porque Deus quer fazer algo diferente em nossa vida. Mas isso nunca deve acontecer num contexto de quebra de aliança. Deve ser feito na luz, falando a verdade em amor, e nos separando em paz, recebendo a bênção dos que estamos deixando. Deus é um Deus de aliança e odeia o divórcio e a traição.

Dentro desse conceito da aliança, da comunidade pactual, tem outro conceito embutido: o da família. Eles são muitos ligados, pois não tem como ter comunidade pactual se as famílias que fazem parte da comunidade não praticam o pacto na família. Começa na família e, a partir daí, vai para a família maior que é a igreja.